"A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós, 1901 (publicação Póstuma)
(…) Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca pôr tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio. Não contive a minha admiração: -Ó Jacinto! Que depósito! Ele murmurou, num sorriso descorado: -Há que ler, há que ler... (…) Amarrotara com cólera a carta começada - eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos economistas. Avancei - e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas Pré-socráticas até às escolas Neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas - e que todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, embaixo, era pesado, de couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na seção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Ortografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto duma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo - e pôr trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor. Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amável dos Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado de todo aquele saber positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e uma mesa de ,limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. (…) Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu peso - diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado. O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama - com um livro... E durante um momento, estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como doutores num Concílio - depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano. Torcendo molemente o bigode caminhou pôr fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças; pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino; penetrou na Revolução Francesa de onde se arredou desencantado; e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas mil almas - e recuou, desconsolado, até aos Biólogos... Tão maciça e cerrada era a estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma cidadela inacessível! Rolou a escada - e, fugindo, trepou, até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos; todo um Sistema Solar desabou em fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar pôr sobre as rimas as obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate. Apanhava, folheava, arremessava; para desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas; saltava pôr cima dos Problemas, pisava as Religiões; e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ânsia de encontrar um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes - e, sem lhe provar a substância, já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância. Findou pôr voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um velho Diário de Notícias, e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer. (…) |
Jacinto e os nomes das árvores...
«E o que esse Príncipe, nesta tarde, me esfalfou! Farejava, com uma curiosidade insaciável, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os esplendores nunca contemplados de um mundo inédito. E o seu tormento era não conhecer os nomes das árvores, da mais rasteira planta brotando das fendas de um socalco... Constantemente me folheava como a um Dicionário Botânico.
- Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais ilustres da Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei se aquele senhor além é um amieiro ou um sobreiro...
-É um azinheiro, Jacinto.
Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente.
E toda essa adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio.
-Tu dizes que na Natureza não há pensamento...
-Outra vez! Olha que maçada! Eu...»
Eça de Queiroz- A Cidade e as Serras (1901), Cap. IX, p. 243